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A VIDA SECRETA DAS PEDRAS

 

Por for a pedra é uma adivinha:

Ninguém sabe como resolvê-la

 

CHARLES SIMIC

 

Vivem imóveis a maior parte de tempo

porque a sua estratégia é passarem despercebidas.

De dia parecem sonhar à beira do abismo

e nem o fogo nem a chuva podem compreendé-las.

De noite, porém, se colocasses o ouvido sobre elas

escutarias festas clandestinas ali dentro,

átomos arrancando outros átomos para dançar,

fogos de artificio nos seus céus domésticos.

 

Mal lhes damos a oportunidade ou as costas,

despedem-se da terra para serem do ar.

Deixa que rodem encosta abaixo perseguindo o sol,

que os anjos dos cemitérios as incubem.

Às vezes, duas pedras encontram-se no caminho

e esfregam-se saudando-se como relâmpagos secretos:

isso prova que são parentes afastados das nuvens.

 

Algunas gostam de atravessar a gelatina de silêncio

que cobre as coisas e ser estrépito nos vidros,

de esbarrar duas vezes com o mesmo homem,

de viajar sem salvo-conduto pelo país das feridas.

Outras preferem o fundo dos rios, sentir a água a passar

sobre elas como a ficha técnica de uma longa-metragem.

Se a corrente fosse um médico-legista poderia abri-las

e saberia então de que morreu a montanha.

 

As pedras do caminho nunca respondem:

feitas de silêncio, quando as nomeamos

arremessamo-las contra o nosso própio telhado.

 

 

 

CEMITÉRIO DO PÈRE-LACHAISE

 

No Père-Lachaise a solidao é um útero de regresso,

os mármores têm a aparência de leite cansado,

a eternidade é uma toupeira que dá de mamar aos seus mortos.

No Pére-Lachaise há crianças albinas a mascar hera,

os corvos entesouram puxadores caídos de portas que ninguém conhece,

soam mais amargos os violinos de Enescu debaixo dos salgueiros.

Junto a Jim Morrison alguns cravos de outros tempos

ainda elevam vapores e descargas eléctricas.

Oscar Wilde é só musgo a rebentar a pedra.

Às seis da tarde um funcionário tranca a morte,

abre a cigarreira. Sumido entre o fumo talvez pense:

Que trabalho inútil viver. Quanto tempo perdido.

Uma roseira deixou os espigões abertos sobre Sadeq Hadayat.

Sentados nos seus ciprestes os anjos levantam âncoras.

O cemitério zarpa novamente e Paris é o Inverno.

 

 

 

THE CRACK IN THE CUP OF TEA

 

E a racha na chávena de chá abre

um caminho para o país dos mortos

 

W. H. AUDEN

 

Há uma racha a abrir caminho

na minha chávena de chá.

 

Leva dias a explorá-la,

percorrendo-a no assombro,

abraçando-a com a sua rubrica

numa tentativa de a fazer sua.

 

Estéril como uma raiz sem caule,

de onde veio e aonde pretende chegar?

O que busca hoje entre as minhas coisas?

 

Fora da chávena era invisível, não era nada;

porém, agora que nela entrou, posso vê-la até ao fim:

és aqui, racha, a ausência da chávena.

 

Se a seguir, se for atrás dela,

talvez tenha algo para mostrar-me

quando alcançar o seu destino.

Talvez no fim do seu raio minúsculo

me aguarde uma grande tormenta

e algo expluda para que algo mude.

 

De noite, a racha e eu permanecemos acordados.

Fazemos um braço de ferro pelo domínio do mundo:

eu, firme, mantenho a inteireza.

Ela, esquiva, prefere ir por partes.

 

 

 

HISTÓRIA NATURAL DOS SENTIDOS

 

E Cheira como camurça açucarada empapada em mel

 

DIANA ACKERMAN

 

Alejandra Pizarnik deixou escrito que a rebelião

consiste em olhá-la até se pulverizarem os olhos.

Dylan Thomas escreveu que são os telescópios

com que os mortos, debaixo da terra, contemplan o céu.

Ém contrapartida, Edmundo de Ory prefere falar

de radiografias de esqueltos de anjos.

 

Faulkner deu-a a Emily, Nick Cave a Elisa Day.

Ao comê-las, o asno de Apuleio transformou-se em homem.

É um fogo que não queima, uma música aprisionada,

a dúvida de Wittgenstein, a ferida no pé de Vénus.

 

As crónicas de Heródoto referm um exemplar

de sessenta pétalas iluminando o jardim de Midas.

Os cidadãos de Síbaris cobriam os seus leitos

com elas para que o sono lhes fosse doce e favorável.

Se na Roma de Horácio se cultivou mais do que o trigo,

o que ficou do horto saqueado de Virgílio?

 

Depois de passar os séculos de mão em mão,

hoje descansa num jarrão de restaurante.

Nada procuramos no seu interior, pois nada esconde:

o papel de embrulho é o verdadeiro presente,

este instante incendiado que o meu braço te estende

para se apagar fugaz no teu braço já recolhido.

 

Olhamos a ementa, os vinhos e os pratos refinados,

no entanto o nosso apetite não é deste mundo.

Um provérbio persa, pensado para nós

e para este momento, deixou-o claro há muito tempo:

O que comes transforma-se em podridão.

O que ofreces converte-se numa rosa.

 

 

 

BLUE JEANS KINDA STYLE

(BILLY COLLINS)

 

Uma vez alguém me acusou de ser

um "poeta naturalista de interiores".

Vivemos tempos sem maiúsculas:

A Alegoria morreu.

 

Sirvo-me dos detalhes mais singelos

—um cão adormecido no chão,

um pássaro que escapa por uma janela

para me rebelar contra a tradição literária

mais grandiloquente.

Milton morreu, mas o cão

continua a respirar ao meu lado.

 

Um adjectivo pode converter-se num parasita

que se alimenta do nome: em última análise, mata-o.

Não há nada como um bom substantivo

que se mantém de pé por si mesmo:

Taça. Chapéu. Osso.

"Cadeira" e toda uma épica.

 

Aqui surge outro pensamento. Escreve-o.

É melhor començar como "Hot Cross Burns"

e acabar como Debussy.

Todos os cantores o sabem:

Come in soft, go out strong.

Começa suave, acaba poderosamente.

 

Jesús Jiménez Domínguez traducido al portugués

 Traducción al portugués: 

 Luís Filipe Parrado 

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